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Nomes da história intercultural em contextos euro-brasileiros
Auguste F.C. de Saint Hilaire (1779-1853)
Nasceu em Orléans, França, no dia 4 de outubro de 1779, faleceu em Turpinière, no dia 30 de setembro de 1853. De família abastada e de tradição do Loiret, destinado primeiramente ao comércio, realizou viagens de estudos aos Países Baixos e à Alemanha. Estudou a obra de Goethe, interessando-se sobretudo pelas suas concepções relativas à morfologia e à metamorfose de plantas. De volta à França, decidiu dedicar-se à botânica.
Esteve no Brasil de 1816 a 1822. A sua viagem, com o Conde de Luxemburgo, realizou-se no ambiente propício às relações franco-brasileiras à época da Missão Francesa. Visitou várias regiões brasileiras do Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso, Espírito Santo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Dirigiu-se à região do Prata, visitando o Uruguai, a Argentina e o Paraguai. Coletou materiais botânicos e zoológicos e anotou as suas observações relativas a várias áreas de conhecimento, tais como geografia, etnografia e história. Coletou acima de 2005 espécies de pássaros, 16000 insetos, mais de 120 quadrúpedes, 35 répteis e ca. de 7600 plantas. Entre estas, mais de 4000 eram até então desconhecidas no mundo científico.
De 1824 a 1833. publicou, em colaboração com Jussieu e Cambessedés, em Paris, a Flora Brasiliae Meridionalis. Recebeu uma cátedra na Faculdade de Ciências de Paris e, em 1830, tornou-se membro da Academia Real de Ciências, sucedendo a Lamarck. Foi nomeado a presidente da Academia em 1835. Com as suas publicações, contribuiu grandemente para a difusão de conhecimentos do Brasil na Europa. Ferdinand Denis, que muito citou de obras de Saint-Hilaire, salientou, por exemplo, que "nenhum viajante melhor descreveu as diferentes técnicas de procedimentos de mineração no Brasil do que Saint-Hilaire; nenhum demonstrou melhor a falta de perfeição das mesmas (...)" (Geschichte und Beschreibung von Brasilien und Guyana, Aus dem französischen, Stuttgart 1839: Schweizerbart, 839)
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As suas obras repercutiram também no próprio Brasil. Entre outros aspectos, contribuiram para o fomento da exploração comercial do mate. As suas coleções estão conservadas, em grande parte, na cidade de Orleans.
A obra de Saint-Hilaire, devido as traduções em língua portuguesa, são das mais bem conhecidas e estudadas dos textos de viajantes estrangeiros. Muitas de suas informações têm sido mencionadas, há muito, em livros de estudos históricos e culturais. Entretanto, apresentam ainda hoje inúmeras possibilidades de análises sob diferentes perspectivas e enfoques teóricos. A A.B.E. dedica-se ao estudo dessas obras à luz dos estudos interculturais em contextos euro-brasileiros e no seu interesse para o estudo das concepções teóricas correspondentes.
[Excertos de trabalhos]
A.F.C. de Saint Hilaire (1779-1853) História Natural na França e a pesquisa da cultura do Brasil no século XIX (1979) Texto simplificado como material para discussões na Semana França-Alemanha do Forum Brasil-Europa de Leichlingen, 1983 (Traduzido do alemão)
Antonio Alexandre Bispo O presente texto, já antigo, oferece excertos de uma conferência realizada em 1983 no âmbito do I° Forum Brasil-Europa de Leichlingen, Alemanha, evento realizado sob a direção de A.A.Bispo. É aqui publicada em português com o objetivo de documentar os trabalhos realizados no âmbito da Academia Brasil-Europa e institutos integrados. Não reflete o estado atual dos conhecimentos, uma vez que os trabalhos tiveram continuidade. O seu objetivo foi preparar a Semana França-Alemanha realizada pela Escola de Música e pelo Departamento de Cultura da Municipalidade de Leichlingen. Por esse motivo, aspectos musicológicos estiveram no centro das atenções. Principais datas do desenvolvimento dos estudos dedicados a Saint-Hilaire 1970. Tradições de S. João del Rei e as observações de Saint-Hilaire. Museu de Folclore/Nova Difusão Musical, São Paulo 1976. À procura de vestígios de Saint-Hilaire. Viagem de estudos a Orléans 1979. 200 anos de nascimento de A.F.C. de Saint-Hilaire. Colóquio. Universidade de Colonia 1983. 130 anos de morte. Semana Franco-Alemã do Forum Brasil-Europa de Leichlingen 2002. Memória, mentalidade e futuro. Sessão de Parati do Congresso de Estudos Euro-Brasileiros Indicações bibliográficas: A. de Saint-Hilaire. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Trad. V. Moreira. Belo Horizonte/São Paulo 1975 (Coleção Reconquista do Brasil, 4) A. de Saint-Hilaire. Viagem pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil. Trad. L. Azeredo Penna. Belo Horizonte/São Paulo 1975 (Coleção Reconquista do Brasil, 5) A. de Saint-Hilaire. Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce. Trad. M. Amado. Belo Horizonte/São Paulo 1975 (Coleção Reconquista do Brasil, 6) A. de Saint-Hilaire. Viagem às nascentes do rio S. Francisco. Trad. R. R. Junqueira. Belo Horizonte: Itatiaia; S. Paulo: Univ. de SP, 1975 (Coleção Reconquista do Brasil, 7) A. de Saint-Hilaire. Viagem à província de Goiás. Trad. R. R. Junqueira. Belo Horizonte: Itatiaia/S. Paulo: Universidade de SP, 1975 (Coleção Reconquista do Brasil, 8) A. de Saint-Hilaire. Viagem a Curitiba e Santa Catarina. Trad. R. R. Junqueira. Belo Horizonte/São Paulo 1975 (Coleção Reconquista do Brasil, 9) A. de Saint-Hilaire. Viagem ao Rio Grande do Sul. Trad. L. Azeredo Penna. Belo Horizonte/São Paulo 1975 (Coleção Reconquista do Brasil, 10) A. de Saint-Hilaire. Segunda Viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo (1822). Trad. V. Moreira. Coleção Reconquista do Brasil, 11) A. de Saint-Hilaire. Viagem à província de São Paulo. Trad. de R. R. Junqueira. Belo Horizonte: Itatiaia; S. Paulo: Univ. de SP, 1976 (Reconquista do Brasil, 18) Bispo, A. A. "Vitalistische Abstammungslehre: Einfluß der Verhältnisse auf die Musik". Die Musikkulturen der Indianer Brasiliens: Stand und Aufgaben der Forschung IV: Zur Geschichte der Forschung. Musices Aptatio 2000/1. Roma/Siegburg: 2001, 133-141
O presente texto, já antigo, oferece excertos de uma conferência realizada em 1983 no âmbito do I° Forum Brasil-Europa de Leichlingen, Alemanha, evento realizado sob a direção de A.A.Bispo. É aqui publicada em português com o objetivo de documentar os trabalhos realizados no âmbito da Academia Brasil-Europa e institutos integrados. Não reflete o estado atual dos conhecimentos, uma vez que os trabalhos tiveram continuidade. O seu objetivo foi preparar a Semana França-Alemanha realizada pela Escola de Música e pelo Departamento de Cultura da Municipalidade de Leichlingen. Por esse motivo, aspectos musicológicos estiveram no centro das atenções.
Principais datas do desenvolvimento dos estudos dedicados a Saint-Hilaire 1970. Tradições de S. João del Rei e as observações de Saint-Hilaire. Museu de Folclore/Nova Difusão Musical, São Paulo
1976. À procura de vestígios de Saint-Hilaire. Viagem de estudos a Orléans 1979. 200 anos de nascimento de A.F.C. de Saint-Hilaire. Colóquio. Universidade de Colonia 1983. 130 anos de morte. Semana Franco-Alemã do Forum Brasil-Europa de Leichlingen
2002. Memória, mentalidade e futuro. Sessão de Parati do Congresso de Estudos Euro-Brasileiros Indicações bibliográficas:
A. de Saint-Hilaire. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Trad. V. Moreira. Belo Horizonte/São Paulo 1975 (Coleção Reconquista do Brasil, 4)
A. de Saint-Hilaire. Viagem pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil. Trad. L. Azeredo Penna. Belo Horizonte/São Paulo 1975 (Coleção Reconquista do Brasil, 5)
A. de Saint-Hilaire. Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce. Trad. M. Amado. Belo Horizonte/São Paulo 1975 (Coleção Reconquista do Brasil, 6)
A. de Saint-Hilaire. Viagem às nascentes do rio S. Francisco. Trad. R. R. Junqueira. Belo Horizonte: Itatiaia; S. Paulo: Univ. de SP, 1975 (Coleção Reconquista do Brasil, 7)
A. de Saint-Hilaire. Viagem à província de Goiás. Trad. R. R. Junqueira. Belo Horizonte: Itatiaia/S. Paulo: Universidade de SP, 1975 (Coleção Reconquista do Brasil, 8)
A. de Saint-Hilaire. Viagem a Curitiba e Santa Catarina. Trad. R. R. Junqueira. Belo Horizonte/São Paulo 1975 (Coleção Reconquista do Brasil, 9)
A. de Saint-Hilaire. Viagem ao Rio Grande do Sul. Trad. L. Azeredo Penna. Belo Horizonte/São Paulo 1975 (Coleção Reconquista do Brasil, 10) A. de Saint-Hilaire. Segunda Viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo (1822). Trad. V. Moreira. Coleção Reconquista do Brasil, 11)
A. de Saint-Hilaire. Viagem à província de São Paulo. Trad. de R. R. Junqueira. Belo Horizonte: Itatiaia; S. Paulo: Univ. de SP, 1976 (Reconquista do Brasil, 18)
Bispo, A. A. "Vitalistische Abstammungslehre: Einfluß der Verhältnisse auf die Musik". Die Musikkulturen der Indianer Brasiliens: Stand und Aufgaben der Forschung IV: Zur Geschichte der Forschung. Musices Aptatio 2000/1. Roma/Siegburg: 2001, 133-141
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Se, na obra de Debret, muitas expressões culturais do Brasil são vistas com olhos de um artista e pintor da história, as suas reflexões manifestam a influência de determinadas correntes de pensamento da História Natural da França. Não se pode deixar de levar em consideração, porém, que nos primeiros anos de sua presença no Brasil o país também foi visitado por um verdadeiro representante das ciências naturais da França e que deixou referências relativas à cultura do povo, ao índio e à música nos seus relatos de viagem: Augusto F. C. de Saint-Hilaire. A vina desse botânico foi devida em parte à iniciativa do Conde de Luxemburgo. Esse naturalista percorreu o o Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Distrito de Diamantes, Espírito Santo e a região costeira do Brasil meridional até a foz do Rio da Prata. Nos seus escritos, registrou dados que contribuiram para o conhecimento de vários grupos indígenas das regiões visitadas, entre eles dos Gaiapós da região das cabeceiras do São Francisco, dos Coroados do Xopotó, dos Maxacalís, dos Macunís e dos Malalís de Minas Novas e, sobretudo, dos Botocudos. Na consideração dos trabalhos de Saint-Hilaire deve-se partir, evidentemente, dos seus pressupostos, ou seja, das correntes de pensamento então vigentes no âmbito da História Natural francesa. Entre elas, cumpre salientar aquelas vinculadas com o nome de J. B. A. P. de M. Lamarck, (1744-1829) e de E. Geoffroy Saint-Hilaire (1772-1844). Sobretudo o livro Philosophie zoologique de Lamarck (1809) marcara a discussão científica, dirigindo as atenções à questão da transformação das espécies pela descendência e ao papel desempenhado na aquisição de características pela adaptação psíquica e funcional do indivíduo. Segundo essa corrente de pensamento, a influência das circunstâncias levaria ao maior ou menor uso de determinadas faculdades causando a perda ou a aquisição de características; estas seriam então reproduzidas nas gerações seguintes. Na morfologia idealística de Geoffroy Saint-Hilaire, partia-se sobretudo da existência de uma forma originária nos organismos viventes e que, qual plano construtor, tenderia a se manifestar no decorrer do tempo, de acordo com as condições ambientais encontradas. Apesar das diferenças nas teorias sustentadas, o pensamento dos naturalistas franceses estava, portanto, sensibilizado para o tratamento de questões relativas à ação do meio ambiente e da descendência na transformação da vida, o que exigia, naturalmente observações da própria natureza. Assim, A.F. C. de Saint-Hilaire era da convicção explícita de que o pensamento deveria ser determinado basicamente pela observação e não por considerações de cunho especulativo. Isso valeria também para a Antropologia, uma ciência que considerava ainda obscura, pois estaria ainda mais fundamentada em especulações do que em observações da realidade.
Faculdades psíquicas, hereditariedade e mestiçagem As idéias de cunho etnológico e antropológico de A.F.C. de Saint-Hilaire expostas nos seus escritos, justificadas pelas suas observações relativas ao homem e à sociedade nas várias regiões do Brasil, denotam a influência do pensamento na tradição lamarckiana. Assim, é sob o pano de fundo das noções de aquisição de faculdades funcionais e psíquicas pelos indivíduos e de transformação pela hereditariedade que se pode melhor compreender o seu interesse pela mestiçagem. Significativamente, A. F. C. de Saint-Hilaire defendia a mestiçagem do índio com o negro como única forma da "raça americana" adquirir qualidades que a permitissem resistir à superioriedade dos brancos. A importância fundamental dada à observação da realidade no pensamento de A. F. C. de Saint-Hilaire e a sensibilidade aguçada para a observação da adaptação psíquica e funcional levaram-no a deixar registros de particular interesse para o estudo da vida cultural e espiritual, ou melhor, do estado de alma de várias regiões e grupos sociais do Brasil. No seu interesse em observar a influência do meio e no cunho vitalista de suas concepções deu necessáriamente particular atenção às manifestações da vida popular, sobretudo evidenciadas nas festas e nas práticas devocionais. Nos seus registros, denota-se a atenção dada à participação nessas festas dos vários grupos sociais, de africanos, europeus, índios e seus descendentes, além de mestiços nas suas várias modalidades, assim como às características psíquicas dessa participação. É nesse contexto que os registros de relevância culturológica e musicológica de Saint-Hilaire adquirem significado mais profundo.
Adaptações, transformações vitais e expressões culturais Nos seus textos, sucedem-se e entrelaçam-se observações referentes a danças e músicas indígenas, a dança e música de africanos e à vida musical sacra e profana de centros urbanos. Assim, por exemplo, o seu relato da viagem às nascentes do Rio São Francisco inclui notícias de valor etno-histórico a respeito dos Coroados de Valença e descrição da música sacra e dos motetos nas tradições musicais ligadas à procissão das Cinzas de São João del Rey, registros esses de extraordinário interesse histórico-musical. Esse procedimento por assim dizer transdisciplinar de Saint-Hilaire, dirigido às adaptações e transformações vitais dos grupos populacionais de diversas proveniências e resultados de diferentes miscigenações, foi particularmente produtivo em regiões caracterizadas por população mixta e pela existência de aldeias indígenas em contacto com núcleos urbanos. Assim, os seus registros são particularmente valiosos para o estudo da história da cultura popular de Goiás, uma província que possuía grande parcela in Farbe dígena na sua população. Saint-Hilaire escreveu a respeito de expressões culturais dessa região na sua Viagem à província de Goiás (Trad. R. R. Junqueira. Belo Horizonte: Itatiaia/S. Paulo: Universidade de SP, 1975 (Coleção Reconquista do Brasil, 8).
Expressões culturais no processo de integração de indígenas no Brasil Central Entretanto, deve-se salientar que os costumes dessa região não deixaram em geral impressão positiva no autor. Esse fato indica o quanto antigas tradições mantidas no âmbito das festividades católicas do Interior do Brasil já eram estranhas a um observador europeu de sua época. Saint-Hilaire teve a oportunidade de presenciar uma das mais importantes tradições festivas da cultura cristã do Brasil Central, ou seja, as cavalhadas, testemunho da extraordinária importância que assumia a adoração do Espírito Santo na religiosidade da região. Assim, Saint-Hilaire deixou registros concernentes às cavalhadas realizadas por ocasião das festas de Pentecostes em Santa Luzia de Goiás. Refere-se, também, à representação de torneios baseados na história de Carlos Magno e dos doze pares de França por ocasião da Festa de Nossa Senhora da Abadia.
Esses registros de Saint-Hilaire testemunham a importância de festejos simbólicos de lutas entre cristãos e mouros no repertório lúdico do Brasil Central dessa época, uma vez que, no seu sentido teológico, tanto as cavalhadas quanto os torneios manifestadamente relacionados com Carlos Magno pertencem ao mesmo complexo de expressões culturais caracterizados por lutas entre cristãos e mouros.
Os fundamentos bíblicos dessas expressões da lúdica católica, não identificados por Saint-Hilaire, eram os mesmos, ou seja, a luta entre Ismael e Isaac, filhos de Abrahão, entendidos alegoricamente, segundo as elucidações de São Paulo, como frutos da carne e frutos do espírito. Assim, compreende-se a razão do cultivo dessas expressões lúdicas na época caracterizada pelas festas do Espírito Santo, pois é sob a ação do Espírito Santo que o homem ganha a luta contra a carne e produz obras do espírito. Se Saint-Hilaire não compreendeu os fundamentos e a razão dessas práticas festivas nas comunidades cristãs apegas às antigas tradições, teve a sensibilidade para observar e registrar a ação de expressões populares do culto à Terceira Pessoa da Santíssima Trindade nos contactos dos diferentes grupos populacionais. De seus dados fica evidente o extraordinário significado dos grupos que percorriam a região no período preparatório das festas, para anunciá-las, convocar o povo e angariar fundos. Assim, descreve a folia que encontrou a caminho de Pouso Alto, na Capela de Curralinho, perto de Vila Boa, com estandarte, violão e tambor, narrando pormenorizadamente essa tradição. Até mesmo um guia de Saint-Hilaire já tinha estado como membro de uma folia do Espírito Santo na aldeia de Santana, habitada por Chicriabás. É importante salientar, assim, que das anotações de Saint-Hilaire fica claro que essas folias visitavam também aldeias de índios, contribuindo à integração dos nativos na cultura cristã envolvente. A relevância dessas informações não pode ser suficientemente apreciada. Ela indica que os cristãos das comunidades urbanas e dos núcleos rurais também se dirigiam a aldeias de índios semi-integrados no âmbito de sua devoção ao Espírito Santo, ou seja, em época que os cristãos se esforçavam em manifestar frutos e obras do espírito, ou seja, entre outros, humildade e caridade.
A visita da folia em aldeia de índios era vista nesse contexto de espiritualidade fundamentada teológicamente, sendo necessariamente compreendida pelos seus participantes como expressão do amor ao próximo e despreendimento. Por sua vez, os índios assim visitados de forma bondosa e pacífica por representantes de uma sociedade que freqüentemente os desprezavam, adquiririam necessariamente uma visão positiva dos usos e costumes vinculados com essa tradição. Pode-se supor, assim, que tenham sido mais abertos à assimilação de formas de cantar e de instrumentos utilizados nessas folias, ou seja, por exemplo, do violão e do tambor citados por Saint-Hilaire.
Batuques, hereditariedade de características e retrocessos
Dos registros de Saint-Hilaire apreende-se também a central importância da devoção a São João Baptista na cultura cristã da região e a sua relevância para a cristianização dos indígenas. A música desempenhava papel relevante nas expressões lúdicas de cunho joanino, como fica evidente na descrição que o autor dá da festa de São João na Fazenda de Mandinga. Saint-Hilaire faz aqui referências ao canto acompanhado de viola e à dança do batuque executada antes das práticas especificamente devocionais. Os comentários do autor referentes às modinhas são depreciativos e mais negativo ainda é o teor de suas palavras referentes à dança. Esta, praticada sobretudo por brancos, teria sido assimilada dos africanos, caracterizando-se por gestos e movimentos impróprios. Saint-Hilaire manifesta aqui não apenas o seu preconceito com relação aos africanos. Deixa entrever que não compreendeu também aqui o sentido da música e da dança no contexto das concepções relacionadas com o Precursor. Por não entender o significado da prática, não reconhecendo o vínculo tipológico com a humanidade velha, carnal, da qual São João foi o maior homem e a maior exceção, Saint-Hilaire explicou a dança simplesmente através de uma suposta origem histórica africana. (...) Nesse meio-tempo, um violeiro cantava fanhosamente algumas modinhas bem tolas num tom plangente, acompanhando-se ao violão. Em geral, é a gente do povo que canta modinhas. As letras dessas canções são muito jocosas, mas ouvindo-se apenas a música dir-se-ia que se trata de um lamento. Todavia, logo começaram os batuques, uma dança obscena que os brasileiros aprenderam com os africanos. Só os homens dançaram, e quase todos eram brancos. Eles se recusariam a ir buscar água ou apanhar lenha, por ser isso atribuição dos seus escravos, e no entanto não se envergonhavam de imitar suas ridículas e bárbaras contorções. Os brasileiros devem, sem dúvida, alguma coisa aos seus escravos, aos quais se misturam tão freqüentemente [...]. Além do mais, foram os seus mestres de dança. Depos da batucada meus hospedeiros, sem nenhuma transição, ajoelharam-se diante de um desses pequenos oratórios portáteis que se vêem em todas as casas e entoaram as preces da noite. Esse ato de devoção foi demorado, e quando terminou, a mesa foi posta e brindou-se à saúde dos presentes. A cantoria e os batuques se prolongaram por toda a noite, e as mulheres acabaram por participar deles. No dia seguinte, quando parti, a dança continuava. Assim foi celebrada na Mandinga a festa de S. João, e em toda parte os festejos eram idênticos. (Viagem à Província de Goiás, op.cit. 47) De acordo com a visão de naturalista francês de sua época, Saint-Hilaire partiu, aqui, da idéia da possibilidade de transmissão por herança de características funcionais e psíquicas adquiridas. Mencionando que os brasileiros se misturavam freqüentemente com os africanos, sugeria que o batuque era um produto quase que geneticamente herdado pela raça branca através das características adquiridas pelos seus indivíduos, resultados da miscigenação. Qualificando os gestos e movimentos dos africanos como sendo bárbaros, sugeria, também, que a transmissão de características adquiridas pela descendência não apenas levava ao progresso dos costumes mas também ao retrocesso, levando à permanência de expressões de um estágio de barbárie.
Historização de estruturas lúdicas na formação de identidades Para o estudo dos contactos musicais entre os indígenas e a sociedade cristã envolvente cumpre citar que Saint-Hilaire registrou a Dança dos Caiapós, um provável exemplo da reinterpretação cristã de expressões de dança e música indígena. A rememoração da luta contra esses indígenas e a alegria de sua superação eram de tal importância para a consciência histórica da população de Goiás que ainda na época da visita de Saint-Hilaire ali se comemorava a recepção que os habitantes de Vila Boa tinham dado aos Caiapós algumas décadas atrás (1780), com Te Deum e festas. Como resultado de observação pessoal do autor é de maior relevância a descrição da Dança de Caiapós da Aldeia de São José, na qual só participaram homens. O significado desse registro reside não apenas na descrição relativamente pormenorizada da coreografia e dos gestos dos dançarinos.
Transformação de sentidos de representações de zoologia simbólica
Relevante é sobretudo a menção a danças imitativas de aves e animais, o que oferece caminhos para a interpretação do sentido da manifestação. Saint-Hilaire descreve pormenorizadamente a mímica da dança do urubú e da onça. Tudo indica que os indígenas cristianizados da Aldeia praticavam danças integradas em contexto festivo religioso, ou seja, mantinham práticas indígenas já modificadas no seu sentido. "Formaram um círculo, sem se darem as mãos, e se puseram a cantar. Seu canto era de uma monotonia extrema, mas nada tinha de bárbaro ou assustador, como o dos Botocudos. No princípio cantaram uma música lenta, apenas marcando o compasso com os pés sem sairem do lugar. Pouco a pouco o canto foi-se animando e os dançarinos começaram a rodar, sempre no mesmo sentido, marcando o compasso com precisão mas sem nenhuma vivacidade, as pernas ligeiramente dobradas, o corpo curvado para a frente, dando saltinhos. Já havia algum tempo que o círculo girava dessa maneira, e eu já começava a me cansar daquela monotonia quando teve início a dança do urubu, um abutre a que os naturalistas dão o nome de Vultur aura. Um dos dançarinos deslocou-se para o meio do círculo e, sempre fazendo os mesmos passos, abaixou-se, juntou três dedos da mão e bateu com eles no chão várias vezes. Em seguida ergueu a meio o corpo e, postando-se diante dos outros dançarinos, pôs-se a fazer contorsões, fingindo querer golpeá-los com os três dedos, que mantinha sempre juntos. Pretendia com isso imitar um urubu dando bicadas na carniça. Logo, porém, começou um novo canto, e a dança da onça sucedeu à do urubu. O mesmo dançarino postou-se novamente no meio da roda e se pôs a dançar, o dorso curvado, os braços estendidos rigidamente para o chão, os dedos separados e ligeiramente recurvados, como garras. Depois de ter dado várias voltas nessa postura o homem deixou o círculo. Sempre curvado, ele correu atrás de uma criança, jogou-a sobre as costas, voltou para a roda e continuou a dançar. Fizera uma imitação de uma onça perseguindo a presa, apoderando-se dela e carregando-a para o seu covil. Durante todo o tempo aquela gente simples mostrara um contentamento e uma alegria que jamais são vistos entre os melancólicos goianos."(op.cit. 66)
Tristezas: abatimento de indígenas cristianizados e melancolia do colonizador
Saint-Hilaire expressa, aqui, como em outras ocasiões, a opinião de que os índios teriam sido muito mais alegres antes de serem cristianizados. Nesta sua apreciação, o autor repetiu a opinião de von Eschwege, segundo o qual os "primitivos habitantes da América" aproveitariam todas as ocasiões para divertimentos, ao passo que os forasteiros - os europeus - se entregavam à melancolia, "oprimindo essa pobre gente de todas as maneiras e lhes invejam o pouco de alegria que lhes é permitido desfrutar." Tal observação pode ser também considerada à luz das concepções naturalistas na tradição lamarckiana. A idéia de que os indígenas aproveitavam todas as ocasiões para festejos e diversões baseava-se primordialmente nos dados de antigas crônicas, por citarem freqüentemente as festas realizadas pelas mais diversas ocasiões. Tais dados não significavam, porém, que tais festas também tinham sido alegres aos olhos dos europeus. A partir da idéia, porém, de que os índios teriam sido alegres, Saint-Hilaire, percebendo melancolia nas expressões que observou, procurou uma explicação para essa perda da alegria. De acordo com as concepções naturalistas, também essa tristeza, compreendida como característica adquirida, poderia ser herdada pela miscigenação. Significativamente, ao tratar de populações compostas de índios e mestiços e africanos, percebia já melancolia nas expressões. De fato, Saint-Hilaire visitou aldeias de população mixta, tais como as do Rio das Velhas, onde salienta explicitamente que os habitantes seriam sobretudo fruto de uma mistura da "raça americana com a dos negros". Tal como os índios, os mestiços aproveitavam ainda todas as ocasiões para festejar; a sua música, porém, deixava no observador uma impressão triste e monótona. O cientista salientou esse fato sobretudo no registro que fêz de uma festa promovida por índios mestiços de Boa Vista, por ocasião de derrubada da mata realizada em mutirão. Aqui, porém, Saint-Hilaire já denota ter percebido a diferença entre a perspectiva dos índios mestiços e a do europeu, uma vez que expressões sentidas como tristes e melancólicas para um europeu podiam muito bem ser entendidas como alegres pelos participantes. (op.cit. 135-136)
Termos europeus na descrição de índios e sua cultura
(...) Como francês, Saint-Hilaire reconheceu que o termo "bugre", utilizado em certas regiões do Brasil, não podia ser compreendido como nome de determinada etnia, pois equivalia à palavra francesa "bougre", empregada depreciativamente para o "índio selvagem" em São Paulo, em Santa Catarina e no Espírito Santo. Esse termo tinha, assim conotações negativas, tais como diabo, pobre diabo, etc. Sob este termo eram conhecidos os índios temidos pelos habitantes de Itapeva, na Província de São Paulo, cidade que visitou e descreveu no último capítulo do seu relato da viagem à Província de São Paulo. Nas suas observações, considera os índios que viviam principalmente entre os rios Itararé e Jaguariaíba, sobretudo os Guanhanás, que o autor não acreditava serem remanascentes dos antigos Guaianases ou Guaianás. Nesse relato salientou mais uma vez a facilidade dos indios na imitação de vozes dos animais. (Viagem à Província de São Paulo, op.cit. 225)
O texto aqui publicado é apenas um das várias centenas de artigos colocados à disposição pela Organização Brasil-Europa na Internet. O sentido desses textos apenas pode ser entendido sob o pano de fundo do escopo da entidade. Pedimos ao leitor, assim, que se oriente segundo a estrutura da organização, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral: http://www.brasil-europa.eu Dessa página, o leitor poderá alcançar os demais ítens vinculados. Para os trabalhos recentes e em andamento, recomenda-se que se oriente segundo o índice da revista da organização: http://www.revista.brasil-europa.eu Salientamos que a Organização Brasil-Europa é exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. É a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro, supra-universitária e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações ou outras páginas da Internet que passaram a utilizar-se de denominações similares. Prezado leitor: apoie-nos neste trabalho que é realizado sem interesse financeiro por brasileiros e amigos do Brasil! Torne-se um dos muitos milhares que nos últimos anos visitaram frequentemente as nossas páginas. Entre em contato conosco e participe de nossos trabalhos: contato
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