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ENSAIO DE SUPERAÇÃO DO FALSO NA CULTURA
(1972)

Antonio Alexandre Bispo

Para o movimento estudantil, que sente a necessidade de renovação das estruturas universitárias, é esse o caminho a ser seguido na situação atual; o melhor, ­ talvez o único caminho possível. Utilizando-se das expressões artísticas e intelectuais percebidas como falsas e despojando-as da sua seriedade, pode-se contribuir muito mais eficazmente para o desmascaramento de fachadas e estruturas no sentido figurado do termo. Elas podem exercer assim uma função relativadora de conceitos e formas, esclarecedora e crítica, trazendo à consciência o ridículo escondido por detrás de aparências sérias de fatos, pessoas e instituições, assim como de formas de vida e de pensar aceitas coletivamente e não refletidas.

As expressões artísticas cafonas, desativadas assim do seu perigo, servem como instrumento à crítica social e individual e servem a uma ação política eficaz, pois esta, sem poder ser abertamente atacada, pois não é explícita, apresenta a realidade sob nova perspectiva, desnudando-a. Esse procedimento revela-se até mesmo como solução de ação cultural-política. Para observadores externos, representantes e preocupados pela ordem estabelecida, uma iniciativa dessa natureza parece ser inócua, até mesmo louvável, pois parece ser expressão de lazer juvenil, uma inesperada reviravolta de atitude, pois esta é quase sempre agressiva e combativa.

Essa atitude pode parecer ser expressão de alienação perante os problemas da política, da sociedade e da universidade. Essa suposição, porém, é um engano.

Esse procedimento é muito mais eficaz e construtivo no sentido de uma transformação pacífica, lúdica mas profunda de modos de pensar e de estruturas estabelecidas. Trata-se de uma metamorfose de conteúdos expressos de forma convencional, esvaziando-a do seu conteúdo primitivo. Com isso, também os participantes passivos, os ouvintes e os observadores passam a ver a realidade com outros olhos: esta torna-se estranha, ou melhor, eles tomam a consciência de serem estranhos no mundo considerado real da cafonice e, que, portanto, pertencem a uma outra realidade.

A aparente alienação não é, assim, uma expressão de falta de interesse, de seriedade ou de responsabilidade pelos problemas atuais do pensamento, da sociedade e da política, mas sim, pelo contrário, da tomada de consciência do caráter mentiroso do mundo envolvente, naquilo que tem de falso, e da convicção, de que a única forma de tolerá-lo e transformá-lo consiste em assumi-lo como uma encenação por assim dizer operística. A acentuação de estereotipos faz com que expressões e formas costumeiras passem a ser estranhas; elas, antes nem mesmo mais percebidas conscientemente, passam a ser sentidas, re-descobertas e, dando motivo a gozo, não são destruídas, mas transformadas.

A apresentação visual e sonora das peças musicais adquire aqui especial importância. Em ambos os casos, trata-se de um jôgo de fronteiras. Sob o aspecto visual, a apresentação não pode vir, de forma alguma, a tomar um caráter circense. O método pode ser, antes, comparado com um transvestismo. A contextualização exagerada do produto artístico assume aqui especial importância. Os músicos-atores podem, para isso, tentar dar corpo a estereotipos e normas correspondentes ao texto das peças apresentadas; aos olhos de observadores externos, "não-entendidos", apresentam-se como atores e músicos não bem capazes de bem executar os papéis escolhidos, aos olhos dos "entendidos", porém, de críticos da realidade, em ambos os casos dão motivos a gozo e contribuem ao desmascaramento do falso.

A denominação que escolhemos para o grupo experimental deste método de percepção e manuseio do cafona, ­ "Faunos da Pauta"­, tem a sua razão de ser. Este título é, por um lado, pretencioso, pois traz uma conotação mitológica, deixa em dúvida se foi ou não escolhido por ingenuidade, por outro lado salienta o dúbio, pois lembra uma conhecida expressão obscena, o que leva, de imediato, ao ridículo e ao gozo.

O termo Fauno tem aqui também uma certa razão de ser. Fauno era uma divindade que favorecia a vida animal e, portanto, uma divindade que favorecia a procriação, a fertilidade e o crescimento dos rebanhos, o que era de interesse para os pastores. Consequentemente, era uma divindade contrária aos inimigos dos rebanhos, ou seja, aos lobos. No sentido figurado, o lobo pode ser visto como o homem falso, que age premeditadamente. Assim na antiga Lupercália, os sacerdotes de Faunus vestiam-se com peles de lobos mortos.

No sentido metafórico, o espírito do homem-lobo, do homem falso e que quer agarrar a sua presa, é um homem interiormente frio. Ora, frieza associa-se, em geral, à diminuição do interesse sexual e, portanto da fertilidade. Consequentemente, o combate do lobo, ou seja, do espírito falso, leva a um acréscimo das sensações, do apetite. Há, portanto, uma relação entre a morte do lobo e a sensualidade. Assim, na Antiguidade, as mulheres que desejavam ter filhos procuravam ser tocadas pelos sacerdotes de Fauno, que as fustigavam com farpas de peles. Eram, assim, purificadas interiormente, o que levou a caracterizar o mês de fevereiro, o mês das Lupercálias, como mês das purificações.

Para o homem que era falso e que queria "comer" os outros utilizando-se de meios falsos, ou seja, aquele que tinha um lobo dentro de sí, o Faunus parecia ser uma entidade assustadora, que surgia repentinamente nas casas, nas florestas e nas noites, em sonhos nos quais eram chamados de íncubos, por exemplo, aos inquisidores e reprimidos do passado. Para aqueles, porém, que procuravam, através da vivência da sensualidade, o esclarecimento da atmosfera interior, ele surgia como um parceiro.

Ora, na medida que percebemos a cafonice e a tratamos da única forma capaz de torná-la inócua, ou seja, não a levando a sério, mas sim gozando apenas sensorialmente as suas aparências, tornadas ridículas, matamos o lobo. Somos então verdadeiramente faunos, pois nos sensualizamos, é fato, mas ao mesmo tempo nos espiritualizamos, pois descobrimos e superamos o falso e a mentira. Essa sensualização torna-se um veículo não só de um processo transformador e saneador da cultura, de uma nova alegria de viver, mas da recuperação ética.

As peças que escolhemos para o início desse processo de aprendizado de percepção do falso e do seu manuseio são facilmente identificáveis como "Kitsch". São peças do início do século: A Mulher de A. Cardoso de Meneses, uma canção oferecida às senhoritas brasileiras e representativa de um feminismo falso, e Gavroche de Nicolino Milano, onde temos já o confronto hoje tão popular de "nova" e "velha guarda".

Com isso damos início também a um trabalho de redescobrimento da nossa música de salão e de teatro de revista do passado, o que exige pesquisas para o seu levantamento e contextualização. Vamos passar, depois, para peças cuja cafonice não é tão claramente identificável, cujos autores fizeram sempre questão de manter uma atitude séria, por assim dizer intelectual, muitos deles atuando em profissões "respeitáveis", não relacionadas diretamente com o mundo do teatro e da música.

[...]


Segunda parte das notas para um ensaio, expostas em encontro do coral da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em 1969. Serviram como base para aulas do curso de Estética da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo em 1972. Publicadas em Brasil-Europa &Musicologia, ed. H. Hülskath, Köln: ISMPS e.V. 1999,39-45
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